"São horas de dormir, meu amor, são horas de dormir".
Não consigo decidir-me, se é isto que te devo dizer ou se mo devo dizer. Tenta perceber, é o hábito, esta catarse de não saber distinguir cada um de nós do nós, desculpa-me, não o faço por mal nem por sede de romance, faço-o porque me habituei assim e custa-me a mudar as palavras assim, de repente, sem aviso prévio, carta registada a avisar, sem aprovação em assembleia, post-it na porta do frigorífico, sem sequer ter tempo para encontrar outras metáforas que não metam o teu azul ao barulho- e agora, como raio volto a escrever "azul" sem que sejas tu, eu, nós?
Perdoa-me o devaneio, de facto, o importante é que são horas de dormir- o sol já se foi há tanto tempo! (pensando bem, já tive tempo de sobra para parar de amontoar sentimentos dentro do azul- afinal, o sol já se foi há tanto tempo!) nas ruas, ninguém para me ver fumar o último cigarro do dia à varanda, as mães já aconchegaram os filhos na cama, os casais apaixonados já deixaram que os corpos confundissem o "nós" com o "eu", a mulher traída já encontrou a impiedosa coragem de fazer as malas, o homem sem nome regressou já a casa depois de percorrer todas as ruas embriagadas da cidade.
São já horas de dormir, meu amor, são já horas de dormir.
No fundo é simples- ao deitar, respirar fundo, inventar um pouco de fé, fingir um pouco do que resta de "nós" e, ao fechar os olhos - dormir. Talvez, ninguém é de ferro, relembrar quando, na cama, não eramos só isto, costas com costas, cada um ouvindo a chuva que cai lá fora à sua maneira, pedindo coragem a deuses em que não cremos para que amanhã, ao raiar do dia, acordemos lúcidos o suficiente para perceber que, a vida é mesmo assim, não há volta a dar-lhe, é preciso acordar.
Afinal, ambos temos já as malas feitas. O que levas tu? Eu levo aquela fotografia de há uns anos, os dois de olhos fechados e , percebo hoje, sonhando; a cigarreira que me ofereceste e, claro ainda aquela outra fotografia perfeita para contar o que somos (fomos?). Acho que nunca cheguei a mostrar-te essa fotografia, nem é agora, que são horas de dormir, que a vou mostrar, mas olha, há fumo, muito fumo, dois sorrisos e tudo o resto é escuro e desfocado. Fomos (somos?) uma fotografia desfocada.
Agora vá, descansa, ambos temos longos caminhos a iniciar amanha, tenta levar algo que não te assombre nem te chame de volta. Não podes voltar a levar-me o músculo vermelho, tal como eu não te posso levar o azul, já tentámos assim antes e foi desastroso.
Não leves nada que te possa trazer de volta.
Não te encostes a mim que eu não posso levar o teu cheiro na minha mão, a tua pele debaixo das minhas unhas, o teu azul.
Vês? custa-me a parar, quero dizer, que raio de piada tem o amarelo ou o lilás? Porque é que o vermelho anda prostituído nas bocas do mundo, sim, porque é que o vermelho é tão cliché?
Não vale a pena. Se quiseres minto-te, pinto-nos de cor-de-rosa e não se fala mais nisso, não nos vamos deitar e ficamos aqui a olhar para a televisão sem a ver, deitamo-nos costas com costas, e amanhã tudo será igual.
Não vale a pena, são já horas de dormir, meu amor, que o amanhã pede que acordemos perpetuamente. Dá-me a tua mão, com a cerimónia exigida por ser a última vez que o fazemos, deita-te a meu lado, beija-me a fronte, costas com costas, horas de dormir.
Descansa, meu amor, sonha-nos uma última vez se puderes, mas descansa, pode ser que assim, amanhã ao acordares, ao ires embora, nem percebas que eu já não estou cá.