quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Amanhã

É difícil acreditar na lata que tens, no desplante de me apareceres aqui, assim, a meio da noite, outra vez. Outra vez.
Lembras-me a criança rabugenta e indisciplinada que diz com olhinhos doces "não quero nada", mas ao ver o coleguinha do lado pedir batatas fritas de sabores enjoativos desatas num berreiro a dizer que queres sim senhor, que não te apetecia antes mas agora apetece, e eu, a querer dar-te batatas, e tu, num histerismo desalinhado a gritar que não queres outras, que queres as dele, e eu, o que hei-de fazer se neste momento és criança e eu nunca soube como se amordaçam rebeldes?, tento explicar-te que não pode ser, que não é assim, quando fores maior vais perceber.
É incrível a lata que tens! Lá por, num momento de loucura, te ter acordado numa noite em que eu nem era eu, em que as estrelas brilhavam mais do que os olhos pediam, em que as feridas guardadas no peito como medalhas me pesavam demais (não te rias, que são medalhas de ouro e parecendo que não ainda pesam), isso simplesmente não te dá o direito de te vires plantar à minha cabeceira, logo aqui, que nem cabeceira tenho, como se este ainda fosse o teu reino e esta almofada ao meu lado ainda fosse para ti.
A ver se nos entendemos, não tens o direito de vir para aqui inquietar-me as paredes nem, muito menos, de pores os meus livros a suspirarem-te o azul. E não me faças olhinhos que a questão há muito que deixou de ser eu querer ou não, a questão é que não te quero tão dentro da minha vida, não quero as chaves de minha casa no teu bolso e nem pensar em partilhar a minha cama só porque hoje, como sempre, até estamos os dois para aí virados, ou porque acabei de me aperceber que as tuas mãos têm o tamanho perfeito para que as minhas se possam encaixar.
Eu disse que se me deixasses passar contigo aquela noite no dia seguinte eu mesma me mandaria embora, e assim fiz, que mais queres que faça? Queres que te persiga na faculdade, que diga ao professor de anatomia que te ensine o meu corpo, porque só o meu é que pode ficar bem com o teu dentro, mesmo quando a beleza nos abandonar e os corpos ficarem velhos, que grite, que me atire da ponte caso não me ouças, que te dê estaladas e te roube beijos logo a seguir, que espalhe o teu nome pela cidade junto ao meu dentro de um coração piroso?
Ora, por favor!, deixa-me estar no meu canto que hoje estou demasiado cansada para sentir, logo a ti, que me fazes sentir tanto. Volta amanhã, amanhã falamos sobre o que quiseres desde que não seja sobre nós, até disposta a falar sobre o aquecimento global ou estúpida lei do tabaco estou, se vieres amanhã.
Vem amanhã, ficamos no sofá a ver filmes pirosos ou, se a calma nos trair, enrolamo-nos por todos os cantos da casa e depois ficamos a fumar cigarros na minha cama, que por aqui não há leis a atrapalhar, e eu deixo-me adormecer com a cabeça no teu colo.
Amanhã, não hoje.
Tem de ser amanhã porque, por muito que me apeteça hoje, não te posso deixar entrar assim na minha vida outra vez, porque temos que ter calma, senão ponho-me a pensar e estou demasiado cansada para pensar agora, pior do que isso, ponho-me a deixar-te aparecer sempre que te apetecer e quando der por mim já é só o teu azul outra vez, o teu toque outra vez, eu só para ti outra vez e simplesmente não te posso entregar este reino numa bandeja dourada, mas vem amanhã, logo se vê.
Amanhã.

14 comentários:

Celi M. disse...

"Amanhã ainda estás cá,
Amanhã é que vais ver
quem vai querer ficar pra trás
quem vai querer passar em vão"

Gosto. Hm Hm! Gosto sim. E se ele não for deixa-o ficar.

Luisa Oliveira disse...

Excelente Sarinha! É por isto que, mesmo estando tu aí e eu aqui, sinto o peito inchado de orgulho (não perguntes porquê, a verdade é que sinto). É um texto escrito de um trago.

whitesatin disse...

Estes fantasmas que nos aparecem à frente nas alturas mais inconvenientes...humpf...

Um "chega pra lá que agora não me apetece" é definitivamente a melhor atitude. Gostei :)

P.S.- Só uma coisinha: este blog será, porventura, um amadurecimento, digamos, das "conversas com o espelho"?

Cumptos

SA. disse...

celi, "mas tu tens que agarrar, para eu poder puxar". um abraço cheio de saudades*

luisa, obrigada por estares aí^^

whitesatin, nunca pensei muito sobre isso, mas de facto parece-me que é assim. Se bem que este blog é muito mais "selecionado"- até agora teve um post por mês e os textos são mais trabalhados- mas sim, acho que é uma "versão madura".
Beijos^^

Anônimo disse...

Nunca vai deixar de existir a proxima vez. Ou a vez que qer chegar mas nao pode vir. Porque já errou tanto que nao vem. Ou entao vem. Outra vez. Esperando que seja diferente. E ai...

Beij0*

Bruno Pereira disse...

obrigado pelo comentario em www.oparaisonaoeaqui.blogspot.com -estas a vontade pa falar comigo : radicalre@hotmail.com

Joana disse...

mais uma vez um texto *daqueles*. cada vez os meus comentários me parecem mais inúteis e repetitivos, visto que são sempre tão bons que me roubam as palavras.

partilho da mesma calma. se ele não estiver cá amanhã, é porque não quer. se não quer, deixa-o lá ficar.

:) *

(gostava mesmo de falar contigo outra vez. ando há imenso tempo para ir ao msn, mas tenho preguiça. =x)

redjan disse...

'... mas vem amanhã, logo se vê. '


... Se vê se há mais amanhãs, se redesejo coisas vãs, se verde quero novo toque, e em amanhãs não te evoque. Passa amanhã, sem esperança ou compromisso !!


SA ... sentei-me um pouco com as tuas palavras. Afinal a luz estava apagada e a sala fechada.

Os teus textos são ... de ler sentado e calado !!!

Carlos Lopes disse...

Sa (agora sei que é Sara): mais um belíssimo texto. Há uma espécie de vertigem na tua escrita, de rapidez, que não está ao alcance de todos... Que prazer!

SA. disse...

joana, eu percebo o que queres dizer*

joana, também não tenho andado muito por lá, verdade seja dita =x

redjan, espero que isso seja bom!

carlos lopes, muito obrigada! uma opinião assim vinda de quem sabe deixa-me feliz!

Joana disse...

pssiu, já estamos em fevereiro, toca a postar! estou em pulgas ^^

Unknown disse...

Parabéns pelo sentimento. É ele que move. Mesmo na sua ausência já o estamos a considerar.

Aposto que aquele que te move é também o que te faz. Aposto que te fizeste uma bonita pessoa.

Francisco

Anônimo disse...

Orgulho-me de escrever que está absolutamente sincero ! bahhh miúda é isso mesmo !

SA. disse...

joana, estou a ir, estou a ir*

francisco, obrigada, de coração. Um abraço*

catarina, obrigada! =)